(Vídeo explicando o trabalho vicentino) Cheguei à casa de madeira com paredes limpas, chão brilhante adornado com tapetes coloridos e bem distribuídos pela casa que cheirava almoço de domingo. Sim, era domingo e o sol estava alto, mas, ele dormia ainda em um colchão jogado no chão ao lado de uma cadeira com a bíblia aberta embaixo de um copo com água.
Ele sentou na cama rapidamente e olhou com estranheza na minha direção e da outra moça que me acompanhava. Viemos fazer uma visita. Começou a gesticular, sem nos olhar nos olhos, a contar sua história e seu medo da doença. Só então pude ver no pescoço um enorme inchaço e em seus olhos o desamparo, a solidão e a carência.
Foi natural eu contar que também já tive um caroço no pescoço, que me tratei, que sofri como ele com o medo da morte e soltar meu cabelo enorme e dizer, olha meu cabelo e eu estive até careca, foi um gesto que beirou o involuntário... Falei, justifiquei. Mas, não estava ali para uma visita como de vez em quando faço como uma paciente de câncer em remissão, estava ali como uma VICENTINA.
Já contei aqui no blog sobre o meu retorno a igreja católica quando entrei no desespero com medo da morte e do sofrimento. No primeiro lugar que fui, resumi bem a minha procura quando disse que não queria morrer com a dúvida e o vazio que sentia de algo divino e superior em minha vida.
E fui bem acolhida de volta, na religião que nasci e fui criada, sim, era descrente dos dogmas, criticava os erros da minha igreja ao longo da história e sua negligencia com a evolução dos dias. Mas, até antropologicamente falando, era o Deus da visão católica que eu rezava quando era criança e que via meus pais, meus parentes arcarem seus corpos para pedir e agradecer e era Jesus para mim o melhor exemplo de vida a seguir e se espelhar. Foi acolhida de volta, fui ensinada, catequizada novamente com os olhos da conversão e o coração aberto para acreditar no divino e relevar a interferência humana no sagrado. Faço parte do cristianismo, da minha igreja, da minha crença e o próximo passo era evoluir espiritualmente com ela e dentro dela.
Ajoelhar e rezar. Rezar e cantar. Ler e estudar a bíblia, seguir os dogmas, fazer parte dos sacramentos. Era isto. Mas, a partir de um momento, me perguntei, mas, é só isto. Não foi suficiente, mas, rezar para ser encaminhada, foi o necessário para ser apresentada a SOCIEDADE SÃO VICENTE DE PAULO.
Frederico Ozanam, fundador da Sociedade, era um jovem católico rebelde no século XVIII. O catolicismo era ridicularizado na sociedade, depois de ser perseguido durante e após a revolução francesa. Ozanam se reunia com jovens para ler poesias, discutir filosofia, arte e literatura e, também, religião. E em uma destas discussões estudando a vida de Jesus e nutrido pelo seu próprio espírito ousado e caridoso, viu seu grupo acadêmico se transformar em um grupo que fazia CARIDADE.
A palavra caridade parece que nos últimos anos ficou um tanto quanto pejorativa, sei la, meio que clichê ou repetitiva, talvez porque quando CARIDADE nos vem a mente, logo pensamos em pessoas caindo nas calçadas nos pedindo esmolas, em pais que exploram seus filhos nos sinais de transito, em jovens que pedem dinheiro nos intimidando a sustentar o trafico. Talvez porque estamos cansados de ver em nosso país a pobreza em todos os lugares e para muitos a caridade ser a única fonte de sobrevivência. Talvez quando ouvimos a palavra caridade nos sentimos tão culpados por viver de forma tão individualista, que simplesmente damos de ombros, enfadonhos.
Caridade, quer dizer na origem literária e bíblica: AMOR. Assim quando lemos o famoso versículo ¨se eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos sem caridade eu nada seria¨, sim é esta a tradução para algumas escrituras e para outras .... sem amor que não somos nada. Caridade é amor. Amor ao próximo. Não aos mais próximos, aos nossos namorados, aos nossos maridos, pais, mães e irmãos, mas, aos distantes, aos que tem outros pensamentos, conduta contraria as nossas, que moram em lugares que nunca ousaríamos pisar e que nos apertam com mãos esculpidas em um passado de realidade completamente distinta das nossas. Você é conseguiria amar, ser caridoso, se doar, partilhar com este próximo tão longe de voce.
Em um passado não muito distante pessoas se imbuíam de ideologias, de filosofias comuns, de causas coletivas e lutavam por elas, às vezes morriam ou longe disto, só doavam seu tempo a discussões, a movimentos que poderiam valer a mudança de vidas em cidade ou em um pais. Há tempos atrás, existiam comunidades que a partilha era cotidiana entre vizinhos e entre famílias. E em nosso mundo moderno, onde o que importa é o nosso próprio sucesso pessoal e profissional, onde conhecidos, amigos e família assumem uma FUNCIONALIDADE em nossa vida, onde máscaras nos faz sôfregos em tentar ser auto-suficientes sentimentalmente e em bens materiais cumulativos, a partilha esta em que parte da nossa semana de 7 dias.
Lá traz rebelde Ozanam inspirou-se na entrega a caridade de São Vicente de Paulo para fazer nascer um dos primeiros grupos no mundo a se preocupar com quem tem pouco ou nada. Sim, hoje é enfadonho falar sobre ajudar o próximo, nos tempos de Ozanam, era ousado. Uma ousadia que revigorou a fé de franceses, depois italianos, depois.... europeus na igreja católica.
A Sociedade São Vicente de Paulo ganhou corpo nestes quase 200 anos de fundação e está presente em quase todos os países. São CONFRADES e CONSÓCIAS, assim que nos chamamos, espalhados pelos 4 cantos também do Brasil, pessoas de todas as idades que se reúnem uma vez por semana em Conferencias Vicentinas para exercitar a amizade do trabalho em grupo, rezar e assistir famílias em suas comunidades. Um trabalho silencioso, manso e que tem o amor ao próximo a base da sua espiritualidade.
Conheci a Sociedade assim que me restabeleci pós quimioterapia, quem está em remissão, e já escrevi algumas vezes sobre isto, sabe a dificuldade de voltar a ativa depois do câncer e conhecer pessoas que se doavam a caridade e, principalmente, começar a desvincular o umbigo como centro do meu mundo me ajudou a superar os medos, os grilos e as encanações. Alguns podem dizer foi altruísmo da minha parte ou ainda, que o que me move é a detestável e medíocre condição humana de COMPARAÇAO DE FELICIDADES, ou seja, nos sentir mais felizes ou melhores porque o outro está pior. Mas, não, não foi, nem é isto. É apenas abrir o coração para a partilha e para o outro. Aos poucos pequenas coisas no cotidiano vão mudando e visitar famílias, discutir seus problemas e se empenhar em ajudá-los me tornou também mais gentil e terna com todos a minha volta, com olhos abertos e amorosos as dificuldades e limitações humanas, sem falar que conheci pessoas maravilhosas que se doam por outros, assim, silenciosamente, como formiguinhas debaixo do seu formigueiro debaixo da terra. Si-len-ci-o-sa-men-te, sem alarde, encobertas pela ordem atual do individualismo e materialismo.
Quando comecei a me tornar adolescente tinha o sonho de mudar o mundo. Revolucionar. Migrar para grandes causas. Ir para a África, Índia. Meus sonhos mudaram. Passei a sonhar mais baixo e a maioria foi até esquecida na poeira dos anos. Em muitas vezes cheguei a afirmar que somente ser responsável com a minha própria vida já era suficiente para fazer do mundo um lugar melhor para todos. Estava errada. Não tenho mais os planos e ideais do início da minha juventude. Mudar o mundo ficou lá traz, mas, sei que a responsabilidade do que não anda lá muito certo no meio a minha volta, também é minha e assumir e agir é o que se espera de qualquer pessoa. O que fica para claro é que hoje o que me impulsiona é sim o resquício do meu furor da juventude e da minha personalidade, mas, principalmente o AMOR. Estar enormemente com o coração e o espírito aberto para o amor, a caridade e a partilha.
No último post, afirmei que quando passamos por um trauma como um câncer por algum tempo o choque nos faz querer mudar nossas vidas inteiramente e os valores mudam, mas, que o cotidiano nos engole. Alguns nunca mais são os mesmos e tantas vezes o que se parece novo por fora, esconde uma ferida de medo e trauma por dentro. Talvez a doença seja a chance para viver ou reviver de uma maneira diferente, resgatar coisas que deixamos para traz. Talvez... Mas, se esta chance existe, deixar que o amor, em todas suas formas, entre desavergonhosamente em nossas vidas é o caminho, sem dúvida, para mudanças pacíficas, coletivas e integrais.
Na última reunião da Conferencia que faço parte, chegamos e algumas mulheres se responsabilizaram por limpar e arrumar no outro dia a tarde o local onde guardamos os alimentos doados. Ficamos felizes porque recebemos a doação de algumas cestas básicas de uma pessoa que conhecia a tantos anos de vista e me surpreendo sempre com suas doações generosas. Depois rezamos. E então cada vicentino, confrade ou consocia, relatou com calma suas visitas na semana. Cada um de nós se responsabiliza por 1, 2 ou 3 famílias e em visitas familiares verificamos o que falta a família, por que ela pediu ajuda, então todos juntos decidimos se adotaremos a família, ou não, família adotada e visitada é ajudada materialmente e espiritualmente. Relatei as minhas.
Ontem ao levantar, lembrei que ele faria a biopsia logo pela manha, rezei por ele. Sei que alcoolismo é uma doença e deve ser tratada por profissionais, mas, seus olhos de abandono e vergonha não abandonaram meus pensamentos durante a semana, a cada pensamento, uma oração. Amanhã, farei minha visita a ele. Provavelmente levarei uma cesta básica, vou levar um pedaço de bolo bem saboroso também, vou ouvir, pacientemente, ele me contar como foi a semana, depois vou dizer algumas palavras, que pedi em oração que saíssem da minha boca, vou me despedir dele com um abraço apertado...Vou esperar que ele sinta a minha CARIDADE para com ele e se sinta mais aliviado perante as misérias da vida. Quanto a mim, provavelmente saia pelo portão da casa com o coração apertado, se importar, às vezes machuca, movimenta, nos faz perceber o quanto somos humanos, somos transitórios e o quanto precisamos ainda evoluir...
Quer conhecer a SOCIEDADE SAO VICENTE DE PAULO - http://www.ssvpbrasil.org.br/
Conhecer o trabalho da SSVP que eu faço parte - http://vicentivando.blogspot.com/